Por um espelho, inerte, vejo o meu corpo,
como em repouso, à espera do comando
dos caprichos de seu dono
que, nesse momento, sonha
em andar por territórios
onde ele não o pode levar.
Então, obediente, ele espera,
como sempre...
Meu veículo, dócil e paciente,
à espera de mim.
Às vezes, me surpreende que, ao indagarem por quem
sou,
eu exiba sua imagem,
e que seu nome, que com ele nasce e com ele morrerá,
seja a mim associado.
E assim, alguma vez, eu o rejeito,
como fosse um vestuário
sufocante e
estreito.
Mas, outras vezes, como agora,
observo-o de fora, com ternura,
e vejo o quanto me tem servido!
Seguiu-me até agora, constante,
por todos os caminhos que lhe ordenei pisar...
Gerou outros corpos, quando assim eu o quis,
suportou-me, oscilante,
sofreu e levou em si as marcas de seu ocasionalmente
imprudente condutor,
que não hesitou em, mais de uma vez,
desgastá-lo desnecessariamente.
Assim como arrastou as culpas por minhas inércias e
minhas paixões...
Tudo aceitou...às vezes, com tímidas reivindicações
de um pouco mais de repouso e de cuidado...
E hoje ainda, quando angustiado
eu me sinto, por não haver conquistado asas,
suporta a culpa por me ter aprisionado
tão longe de casa.
A verdade é que, nos momentos de lucidez,
às vezes, o invejo,
por sua resistência e abnegação,
por sua devotada obediência
a uma voz que lhe parece superior.
Tempo virá, meu corpo, em que te devolverei,
exausto e inerte, nos braços da mãe piedosa
que te cedeu a mim...
E ela te envolverá e levará de volta
para o seu ventre,
e te dará o justo reconhecimento
e o justo descanso...
E eu voltarei, sonolento e pouco consciente,
ao Pai-Mistério que te fecundou com essa semente,
essa voz que conheço como “eu”.
A verdade é que ouço sons que me convidam a despertar,
a voltar para casa,
vozes sagradas, réquiens de Mozart, versos de Rama,
e tantas outras coisas que queimam feito chama
em meu, em nosso coração.
Entendo-as pouco, tanto quanto tu as entendes...
Mas sei, intuo que, um dia, essas vozes
virão nos separar.
No entanto, não temas:
pois tua mãe é infinito Amor,
e há de te modelar em novas formas,
e te entregará a um novo condutor,
quem sabe, mais gentil e mais prudente...
Também não morrerás.
Quanto a nós dois... não sei, mas também o sinto
que os passos válidos que demos juntos,
que os momentos em que te curvei ante o sagrado,
que os instantes que te fiz chorar
diante do nobre e do belo...
Tudo isso e algo mais há de ter forjado um elo,
que há de um dia, sumo segredo,
resgatar tudo que foi vivido,
recolher cada passo que foi dado,
reunir todas as sementes.
E, então, meu corpo, humilde e dedicado,
me encontrarás ao teu lado, novamente.
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