Poesia para despertar Sophia

Poemas inspirados em vivências filosóficas

Minha mãe nunca deixou meus pés dormirem descobertos;
dizia que dava “friagem” e era gripe na certa.
Com essa teoria, preencheu minhas noites de infância
com o pontualíssimo ritual do puxa-cobertor,
sempre seguido de beijo e de “dorme com Deus”.
Meu pai andava com foto minha, entre outras, na carteira.
Puxava a qualquer ora, em todo canto,
até mesmo em fila de banco,
e dizia: “Tá vendo essa aqui? é minha menina.”

Minha vida esteve repleta de noites serenas,
nubladas, algumas, mas tantas cobertas de estrelas!
E, ao longo de tantas madrugadas,
raios tímidos e pálidos esgueiraram-se por minha janela
e, tocaram, suaves, meu rosto,
antecipando-se a uma aurora ainda mais bela.

Tantas vezes, tive que limpar meu rosto
de beijos de boquinhas lambuzadas.
Tantos cadernos cheios de rabiscos:
casinhas, flores e esboços de carinhas
com seta indicando: mamãe e eu.
Coisas tão doces quanto a gemada
que a mãe fazia, quando a gripe, que é matreira,
dava jeito de encontrar o pé da gente
no meio das cobertas, noite adentro.

Tantas coisas tão doces e belas,
e eu jamais me permiti amá-las
da maneira que faziam por merecer.
Tantas vezes desprezei o humilde amor humano
numa ânsia fantasiosa de grandeza,
quase insana, para alguém que é tão pequena.
Incapaz sequer de perceber
que o presente também é divino,
confundindo virtude e vaidade,
ansiedade com esperança,
lançando-se em um abismo
entre aquilo que abandona,
e o que, distante, ainda não alcança.

Aos Deuses, que são o que são
por estar onde lhes corresponde,
eu peço que ativem meus olhos,
que sempre pensei estarem abertos,
pois meus pés estão descobertos
e chegaram a resfriar o mais fundo do meu coração.

Não sei se haverá mel de abelhas
que volte a adoçar minha vida.
Talvez chá de alho, forte, com limão,
que expulse o vírus da vaidade,
dando lugar ao singelo amor humano
neste meu coração.

O amor que sabe ralhar e dar palmadas,
mas que é maior do que a zanga, e prevalece.
Puxa pro colo de novo, afaga e esquece,
pequena chama que jamais se apaga.
Esse que sabe correr para a janela,
à toa, às vezes, por nada,
e pegar de surpresa a mais bela
e misteriosa madrugada.
Que colhe flores de um jardim qualquer
e põe para enfeitar a casa.
Que espera a primeira estrela
para fazer-lhe um desejo.
E não sai de casa sem dar beijo
ou dedicar um doce sentimento
até mesmo aos seres invisíveis
que também habitam nela.
Que converte, enfim, em beleza,
o viver simples de cada momento.

Aos Deuses, eu peço, enfim,
que apurem minha vista,
pois nem mesmo um mar de lágrimas
teve êxito em fazê-lo,
e meu pranto acabou por converter-se
em úmido espetáculo egoísta
de quem não crê que, de fato, o amor exista,
e de quem pensa demais na própria dor.

Destilar toda a avalanche dessa dor
em uma gota de simplicidade,
e terá valido a experiência.
Fiel ao meu pedido inicial,
de não reerguer-me, senão maior que antes,
com uma gotícula de visão da essência,
de compreensão da condição humana,
de uma sólida, ainda que ínfima
parcela de sábia maturidade.
Qual base firme que me torne capaz
de ter e dar amor, e nada mais.
Arte e requinte dos homens sensatos,
que, com o pouco que lhes coube, erguem edifícios,
e, do exercício de sua sóbria sensatez,
acabarão por destilar, um dia,
algumas gotas de real Sabedoria.

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